sábado, 15 de março de 2008

O Preço da Fama

Milene Pacheco - Carta Capital

Sentada no sofá de sua casa, Estamira Gomes de Sousa nem parece a mesma protagonista do documentário que recebeu o seu primeiro nome. Com voz mansa e olhar esmorecido, a ex-catadora de lixo do aterro sanitário Jardim Gramacho passa os dias transitando da cama para o sofá, do sofá para a cama. Só sai para ir ao médico. Prestes a completar 67 anos no dia 7 de abril, carrega em seu corpo exausto as dores de mais de 20 anos de árdua labuta no lixão. Foi lá, no maior aterro da América Latina, que Estamira saiu do anonimato para se tornar a feiticeira, a louca, a dama do Apocalipse. A filósofa. “Eu nem sei o que é filósofa”, responde ao ser informada do título que recebeu de alguns críticos. Em meio aos urubus e ao cheiro putrefato do ar, Estamira buscava sua sobrevivência nas montanhas de lixo quando o cineasta e fotógrafo Marcos Prado a encontrou. “Tarda, mas não falha. Estava esperando por isso há muito tempo”, respondeu ao rapaz que pedia permissão para fazer uma foto dela. Não demorou muito para que o fotógrafo ficasse hipnotizado pelos seus discursos metafísicos sobre o mundo. “A minha missão, além d’eu ser Estamira, é revelar a verdade, somente a verdade. Seja capturar a mentira e tacar na cara”, disse a Marcos, a quem incumbiu a tarefa de revelar sua missão. Nas telas, Estamira não fala. Profere. Grita. Resmunga. Suas idéias bambaleiam entre a lucidez e a loucura. Os surtos de raiva registrados no filme revelam os distúrbios mentais provocados pela esquizofrenia. “É preciso ter o caos dentro de si para gerar uma estrela”, diria Friedrich Nietzsche. No filme, que ganhou 33 prêmios no Brasil e no mundo, Estamira cria uma linguagem própria e teoriza sobre Deus, educação, meio ambiente e comunismo, sem hesitar. Suas análises são resultado da mistura entre as vozes que diz escutar do Além com registros de sua memória. Alfabetizada pelo Mobral, a ex-catadora de lixo conta que nunca teve o costume de ler. Onde aprendeu tudo aquilo? “Com a experiência da vida, vendo como a banda toca.” Da pequena sala com as paredes pintadas de um amarelo vivo, ouve-se uma canção evangélica com ritmo pop que vem do barraco ao lado, onde mora seu filho, Hernane José Antônio, com a esposa e os três filhos. Alguns anos atrás, Estamira não permitiria música religiosa em sua casa. No documentário, briga com o filho e com o neto, a quem apelidou carinhosamente de Réu, quando eles ousam falar sobre religião. “Que Deus é esse? Que Jesus é esse que só fala em guerra e não sei o quê? Só pra otário, pra esperto ao contrário, abobado, abestalhado. Quem anda com Deus dia e noite, noite e dia na boca, ainda mais com os deboches, largou de morrer? Quem fez o que ele mandou, o que a quadrilha dele manda, largou de morrer? Largou de passar fome? Largou de miséria?”, questiona Estamira, com um tom profano capaz de arrepiar muitos fiéis, em uma das cenas do documentário. Estamira já não se altera ao tocar no assunto. Até sorri quando fala sobre o famoso “Trocadilo”, termo criado por ela. “Deus é um qualquer, um cientista do Egito, e não o poder superior real natural. Essa troca do homem pelo poder é o ‘Trocadilho’ (pronuncia, desta vez, o termo com lh). Eu não respeito essa idéia de Deus. Respeito a Nossa Senhora, que pra mim é a mãe natureza.” Essa calma, condição rara de ser encontrada na Estamira do documentário, vem das caixas e caixas de remédios que ela toma para os mais diversos tipos de doenças, que vão da diabetes às fortes dores na cabeça. As discussões mais amplas, presentes na euforia dos discursos no filme, param por aí. Estamira está cansada. Nas últimas semanas, os “grilos” que tomam conta de sua cabeça dividem espaço com um único assunto: a posse de seu terreno. Em fevereiro, foi intimada por um dos vizinhos a deixar sua casa num prazo de três meses. Há 15 anos, Estamira vive num pequeno terreno no bairro de Prados Verdes, em Nova Iguaçu, região metropolitana do Rio de Janeiro. “Foi ele quem me arranjou o terreno, mas isso é posse da prefeitura.” Hernane já entrou com um pedido de usucapião e garante que, em breve, tudo estará resolvido. Porém, nada, nem ninguém, tira o problema de sua cabeça. “Ele tá com olho gordo, achando que o Marcos tem dinheiro.” Desde que ela parou de freqüentar o lixão, em 2004, por problemas de saúde, o cineasta, produtor do filme Tropa de Elite, dá a Estamira uma mesada de, mais ou menos, 500 reais por mês. “Ele é uma mãe pra mim. Pagou todo o material usado na construção desta casinha.” No pequeno lar, os objetos estão todos em seu devido lugar. As roupas que achou no lixão estão separadas em pilhas no armário improvisado. As panelas velhas e enferrujadas também estão dispostas na mais perfeita ordem. Estamira não está só. Levou seu companheiro de Gramacho, João Carlos Vicente, para lhe fazer companhia. O senhor tímido de sorriso doce também está no filme, cantarolando um trecho da música As Curvas da Estrada de Santos com Estamira, a quem é grato “por tudo”. “Lá no Gramacho, todo mundo me reconhece, dizem que eu estou importante”, conta João. Além de ser reconhecida no bairro onde mora, dois anos depois da estréia do filme, Estamira ainda atrai a vizinhança. “Tá todo mundo achando que eu tô rica. O povo vem me pedir dinheiro. Não tenho dinheiro nem pra comprar pão.” Em tom mais baixo de voz, Estamira cochicha, apontando para fora da casa: “Eles tudo, é eu que trato deles”. Além da mesada de Marcos, Estamira, João e a família de Hernane vivem com o dinheiro do INSS, que ela recebe e com o Bolsa Família. Apesar de agora pintar as unhas de vermelho, a aparência continua a mesma da época do filme. Estamira diz ter alcançado a sua missão. “Consegui falar a verdade. Deu certo, porque todo mundo gostou.” A dupla de ex-catadores de lixo se recorda do Jardim Gramacho com carinho. “Sinto muita falta de lá, vontade de ir, mas não agüento. Sinto saudade daquela muvuca, do pessoal”, conta Estamira, como se realmente falasse de um jardim verdejante, como sugere o nome do lixão. No lugar da trilha sonora sinistra do filme, apenas o cacarejo do galo que cisca os restos no chão batido do quintal. Estamira, desta vez em cores, acomoda-se no sofá e despede-se com serenidade.