quarta-feira, 24 de junho de 2009

Conferência Nacional de Educação: Qual o centro do debate?

“Qualquer pessoa que se recuse a assumir a responsabilidade coletiva pelo mundo não deveria ter crianças,e é preciso proibi-la de tomar parte em sua educação.” (Hannad Arendt)

Hannad Arendt, filosofa alemã, em seu artigo “A crise da educação”, afirmava que ter responsabilidade pelo mundo assume, na contemporaneidade, a forma de autoridade, fato este que deve ser reconhecido para muito além da qualificação ou da capacitação. Talvez esta seja uma das explicações para o atual estado da educação pública brasileira – ausência de autoridade legítima ou total falência da responsabilidade coletiva sobre o ato de educar as novas gerações. E é interessante relacionar este pensamento ao fato histórico da convocação da Conferência Nacional de Educação – Conae, que tem como tarefa central a construção do sistema nacional integrado, além de debater o novo Plano Nacional de Educação – PNE.

O objetivo proposto pela Conae não é nenhuma novidade, pois esta tem sido a pauta principal do movimento progressista em educação no Brasil. É possível identificar na história recente da República a legitimação de interesses privados em detrimento do bem público, e lógico, que a educação pública também esteve permeada por este enfoque.

Há no sistema educacional brasileiro uma forte contradição. A escola de massas que se consolidou nas últimas décadas permanece distante da formação necessária que o próprio sistema capitalista coloca como condição essencial à formação do homem ativo, produtivo e integrado.
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Neste sentido, nos ofereceram duas alternativas para elegermos um culpado para o fracasso da educação brasileira. O primeiro trata de responsabilizar a escola, pois diz-se que esta encontra-se despreparada para educar, instruir e profissionalizar. De outro lado, a própria escola trata de culpar a sociedade por esta ter se desresponsabilizado pela educação de seus filhos, ou ainda, de forma mais imediatista, trata de eleger o aluno como desinteressado, incapaz e problemático.
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Em meio a tudo isso a questão da autoridade surge como um alerta social capaz de enfrentar esta falsa contradição. A escola tem sido o primeiro canal de relação da criança com o mundo. No entanto, a escola não é, de modo algum, o mundo e jamais deverá sê-lo. Assumir autoridade é um primeiro passo para esse resgate. Como dizia Arendt, “quanto mais radical se torna a desconfiança face à autoridade na esfera pública, mais aumenta, naturalmente, a probabilidade de que a esfera privada não permaneça incólume.” Portanto, é preciso resgatar a autoridade pública frente aos desafios de educar uma nação. Não nos será permitido relegar somente à escola o papel de educar nossos filhos. Para tanto, o Estado (não o governo) deve assumir para si o resgate da autoridade e, assim, ser capaz de responsabilizar também a sociedade para tal.
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É nisto que se fundamenta a necessária ação articulada do campo progressista na Conferência Nacional de Educação. Precisamos restabelecer os atores e apontar os papéis corretos para que a educação pública assuma a sua real tarefa, pois é nela que reside “o ponto em que decidimos se amamos o mundo o bastante para assumirmos a responsabilidade por ele”. (Arendt)

Responsabilizar-se é, neste sentido, delegarmos com clareza o papel do Estado, da sociedade e da escola frente à educação e aprendizagem. E isso não será feito se o palco propício para isto se tornar objeto de disputas corporativas incapazes de identificar o centro do embate: a ampliação da educação e a sua tarefa pública frente aos interesses privados e fragmentados que permeiam esta discussão, resgatando o citivas mundi, onde a educação assuma a formação do sujeito “mundanizado”, ativo, liberado de vínculos e ordens e crítico frente aos desafios de seu tempo.
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Para além do corporativismo de classe e o neoprodutivismo e a sua necessária superação
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Nas últimas décadas brasileiras a contradição emergente se dá nas relações entre um acelerado crescimento urbano provocado pela industrialização que acabam por operar em pressões sociais nas mais diversas esferas públicas, dentre estas, na necessidade de expansão da escolarização.Para isto, um sistema de ensino conservador e arcaico como o modelo brasileiro de escola torna-se um impedimento ao sistema econômico, o que por si só já é suficiente para que ocorram manifestações em diversas esferas para que a educação assuma papel na superação dos entraves para o desenvolvimento.
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Para tanto, é fundamental para um país que queira superar os obstáculos para o seu desenvolvimento que o sistema educacional se renove. Mas é fundamental também compreender que esse fenômeno se debate sistematicamente com uma estrutura de Estado que apresenta um forte grau de desequilíbrio histórico, o que estabelece contradições tamanhas que vão permear fortemente a disputa de projeto nacional, onde a educação passa a ser uma pauta de forte apelo.
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Exemplo recente disto tem sido tanto os esforços dos setores progressistas e dos movimentos educacionais pela democratização da educação pública e a sua relevância política e cultural que são acompanhados de perto por movimentos empresariais expressos no último período pelo movimento “Todos pela educação” que se afirma em seu próprio programa como “um movimento que tem como objetivo contribuir para que o País consiga garantir Educação de qualidade para todos os brasileiros.” É interessante destacar que os signatários deste movimento são nada menos que o Banco Real, a Dpaschoal, a Fundação Bradesco, a Fundação Itaú, a Gerdau, o Instituto Camargo Corrêa, a Odebrecht, a Suzano, etc.
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Antes de explicitar os principais objetivos dos movimentos históricos de defesa da educação, cabe aqui dedicar atenção aos reais objetivos do chamado setor privado no desenvolvimento da educação brasileira.A educação escolar e as demandas do desenvolvimentoSegundo Romanelli(1) (2008, p. 25), “a herança cultural, influindo diretamente sobre a composição e os objetivos perseguidos pela demanda escolar, os rumos que toma a economia, criando novas necessidades de qualificação profissional, e a expansão da educação escolarizada, obedecendo à pressão desses dois fatores, compõem o quadro situacional das relações existentes entre educação e desenvolvimento.” Eis que surge no Brasil uma demanda que unifica todos os setores – uma educação para o desenvolvimento.
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Neste sentido que ganhou força a concepção neoprodutivista que teve seu inicio no produtivismo e no tecnicismo educacional que permeou as reformas durante o período da ditadura militar e que foi refuncionalizada durante os governo de Fernando Henrique Cardoso. Tendo como ênfase a qualidade social da educação, o neoprodutivismo alcançou sua nova roupagem no projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), no projeto de Darcy Ribeiro, e que teve continuidade com a regulamentação de seus dispositivos na aprovação do atual Plano Nacional de Educação (PNE).
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Ou seja, a educação deixa de ser uma demanda histórica da nação para assumir interesses privados, que esbarram somente na capacidade de produção do país. Eis um debate que permeará com força a Conferência Nacional de Educação, pois o segmento empresarial encontra-se altamente articulado com o Estado, com os meios de comunicação e influenciam decisivamente na formação da opinião pública. É preciso então restabelecer um campo contra hegemônico que enfrente este debate sem desmerecer os elementos constitutivos do projeto neoprodutivista, mas que chame a atenção para que a educação assuma tarefa muito maior do que somente a formação de mão de obra qualificada, ou seja, para que a educação brasileira ajude a desenhar um novo estado independente e desenvolvido e que faça frente a atual crise sistêmica do atual modelo de desenvolvimento.
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A educação se insere nos marcos da capacidade de um determinado país em apresentar saídas para os entraves ao seu desenvolvimento e, para tanto, cabe ressaltar que a disputa da autoridade pública frente ao problema da escolarização brasileira precisa apresentar um projeto que supere o produtivismo e que afirme parâmetros claros a serem defendidos no novo Plano Nacional de Educação, o que passa a ser a tarefa central na Conae.
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Reorganização da educação e a redefinição do papel do Estado - "qualidade total" e "escola corporativa"
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Analisando as concepções manifestadas pelas grandes empresas e corporações no Brasil, fica evidente que as relações objetivas do setor empresarial junto à educação se baseiam nas premissas da busca de maior produtividade, tendo como instrumento as certificações do tipo ISO 9000, criando assim, mecanismo e padrões que possam atestar tal qualidade. A qualificação profissional surge no cenário do mundo do trabalho e torna-se mais do que mera coadjuvante no processo produtivo. Dentro deste marco é possível perceber o avanço de dois mecanismos estruturantes deste caminho adotado pelo capital: de um lado os mecanismos de aferição e certificação da qualidade total e, de outro, a auto-responsabilização ou o controle sobre os mecanismos que garantam tais objetivos.
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Para Dermeval Saviani, "O empenho de introduzir a "pedagogia das competências" nas escolas e nas empresas moveu-se pelo intento de ajustar o perfil dos indivíduos, como trabalhadores e como cidadãos, ao tipo de sociedade decorrente da reorganização do processo produtivo. Por isso, nas empresas busca-se substituir o conceito de qualificação pelo de competências e, nas escolas, procura-se passar do ensino centrado nas disciplinas do conhecimento para o ensino por competências referidas a situações determinadas. Em ambos os casos o objetivo é maximizar a eficiência, isto é, tornar os indivíduos mais produtivos tanto na sua inserção no processo de trabalho como em sua participação na vida da sociedade. E ser produtivo, nesse caso, não quer dizer simplesmente ser capaz de produzir mais em menos tempo. Significa, como assinala Marx, a valorização do capital, isto é, seu crescimento por incorporação de mais-valia." (Saviani, 2008)
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Neste sentido, proliferam-se nos meios empresariais e industriais as chamadas escolas corporativas. Isto tudo não seria nada demais se os interesses do capital estivessem somente focados nos seus próprios mecanismos para a obtenção da qualidade. Mas o que assistimos nas últimas décadas foi uma apropriação do Estado pelos interesses privados, o que passa pela imposição sobre os interesses público.
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É ai que mora a crítica à pedagogia das competências, pois ela está diretamente relacionada aos interesses do capital e não aos interesses públicos. O modelo empresarial não limitou-se somente ao ambiente da escola básica, bem pelo contrário, buscou ir muito além. Hoje, as empresas tornam-se agências educativas através de suas fundações e mais do que isto, buscam formar um consórcio nacional com interesses comuns, articuladas ao ponto de influenciarem nas políticas públicas para a educação. Essa é a "pedagogia corporativa" que ja se dissemina também através do ensino superior brasileiro. Durante os dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso esse modelo proliferou-se com a oferta indiscriminada das mais variadas modalidades de cursos superiores, quase todos para a formação técnica e de requalificação profissional.
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Este foi um caminho que provocou o desmantelamento da universidade do conhecimento, tema que devemos voltar mais para frente. Mas o que fica evidente é que estamos enfrentando neste atual estágio da luta educacional brasileira os interesses privados arreigados no seio do Estado e, portanto, devemos apontar que o nosso principal adversário na preparação do novo PNE será a pedagogia das competências e a pedagogia corporativa, tendo como meta a desencorporação desta concepção da política do Estado brasileiro para a promoção de uma educação para o desenvolvimento nacional.
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Portanto cabe aqui uma definição de desenvolvimento nacional que, ao meu ver, é antagônica a concepção de desenvolvimento imprimida pelo setor do capital. Para estes, o desenvolvimento das forças produtivas está associado somente aos objetivos de ampliação do lucro e da produtividade e o consumo. Os objetivos progressistas e sociais vão muito além disto, pois o desenvolvimento tem como pressupostos a vida humana, a qualidade social, a socialização dos bens públicos, e na educação esse enfoque ganha força com o modelo de escola socializadora, democrática e emancipatória. A "guerra" então se dá entre os interesses privados, representados pelos interesses do capital, contraposto pelos interesses públicos, referenciados na luta histórica pela questão nacional.
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Se os pressupostos da pedagogia das competências fundamentam a atual LDB e materializou-se nos objetivos e metas do atual Plano Nacional de Educação como afirmamos ateriormente, não há como não enfrentarmos o debate da necessária reformulação das políticas de Estado que norteiam o sistema nacional de ensino. Para tanto, penso que a Conferência Nacional de Educação deverá enfrentar o debate contra a pedagogia das competências, materializada na opinião dos setores do capital e de seus teóricos que encontram-se em posições destadas na academia e nos órgãos públicos e de governo. É preciso diferenciar a educação formal escolar da educação informal ou não-formal, atribuinda a cada qual o seu papel e apontando a responsabilidade do Estado, dando maior atenção ao processo educacional escolar. Se existe uma escola com objetivos corporativos e de referência na qualidade total, então que esta não seja a escola pública brasileira, porque esta precisa estar muito além dos objetivos da pedagogia das competências. E mais do que isto, se existe uma LDB que tem em sua excência a visão neoprodutivista, então que reformemos a atual Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional.
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Márcio Cabral, estudante de Pedagogia da UNIFESP e membro da Executiva Nacional da UJS
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(1) ROMANELLI, Otaíza de Oliveira. História da Educação no Brasil. 33ª ed. Vozes : Petrópolis,RJ, 2008.

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